Em nota técnica
datada de 15 de fevereiro, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), que
congrega juízes trabalhistas, federais e estaduais de todo o território
nacional e de todas as instâncias, se manifesta contra o PLS nº 513/2011, que
prevê a privatização do sistema carcerário brasileiro.
“De início, na
justificação do Projeto de Lei de nº 513/2011, encontra-se o famigerado
argumento da alegada incompetência estatal para administrar, no caso, o Sistema
Penitenciário, olvidando-se tratar-se de opção política a não alteração da
atual situação caótica dos presídios brasileiros, quando se observa, por
exemplo, a destinação de grande parte do orçamento público para o pagamento de
juros da dívida pública. Observa-se, portanto, a vetusta tática de prévio
sucateamento do serviço público para sua posterior destinação ao setor
privado”, manifesta-se a ADJ em um dos trechos da nota, cuja íntegra pode ser
lida a seguir.
Nota técnica contra o PLS N° 513/2011: pela não privatização do sistema
carcerário
A ASSOCIAÇÃO JUÍZES
PARA A DEMOCRACIA – AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou
corporativistas, que congrega juízes trabalhistas, federais e estaduais de todo
o território nacional e de todas as instâncias, e que tem por objetivo
primordial a luta pelo respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos
próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar NOTA TÉCNICA a
respeito do Projeto de Lei n° 513/2011, que regulamenta a celebração de
parcerias público-privadas (PPPs) para construção e administração de
estabelecimentos penais.
1. O Projeto de Lei de
n° 513/2011, em linhas gerais, estabelece ao Estado a possibilidade de
celebração de parcerias com o setor privado na área da execução penal, de tal
forma a possibilitar que, às empresas selecionadas por meio de licitação, sejam
delegadas as tarefas de construção e administração de estabelecimentos penais,
que poderão abranger presos “condenados e provisórios” (artigo 2°).
Em contrapartida,
os atores privados serão remunerados mensalmente pelo Estado, com base na
“disponibilidade de vagas do sistema penal, no número de presos e na prestação
de serviços requeridas pelo contrato” (artigo 9°), sem prejuízo de disporem de
“plena liberdade para explorar o trabalho dos presos” (artigo 10°),
“diretamente pelo concessionário” ou de forma “subcontratada” (artigo 11), sem
que isso implique estabelecimento de vínculo empregatício (artigo 10, § 1°) ou
acesso, por parte dos detentos, a direitos sociais básicos, como o salário
mínimo (artigo 7°, inciso IV, da Constituição da República).
2.
De início, na justificação do Projeto de Lei de nº 513/2011, encontra-se
o famigerado argumento da alegada incompetência estatal para administrar, no
caso, o Sistema Penitenciário, olvidando-se tratar-se de opção política a não
alteração da atual situação caótica dos presídios brasileiros, quando se
observa, por exemplo, a destinação de grande parte do orçamento público para o
pagamento de juros da dívida pública. Observa-se, portanto, a vetusta tática de
prévio sucateamento do serviço público para sua posterior destinação ao setor
privado.
3.
Semelhante proposição esbarra, logo de saída, na impossibilidade de se
delegar ao setor privado o monopólio da violência, consistente na imposição e
acompanhamento de sanções de caráter aflitivo, por se tratar de potestade que
advém diretamente da soberania do Estado.
O artigo 144, da
Constituição da República, estabelece expressamente ser “dever do Estado” a
gestão da segurança pública, exercida “para preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
A avocação, pela
Administração, do poder de punir (que engloba tanto a estipulação como a
execução da pena), consubstancia conquista civilizatória inerente a uma
concepção moderna de Estado, e não pode, sob os pontos de vista ético e
jurídico, ser alienado a terceiros cujas finalidades nenhum compromisso guardem
com os objetivos publicísticos declarados da pena (ressocialização, redução dos
índices de criminalidade), senão com a exploração da política de encarceramento
como forma de obtenção de lucro. A inserção de um novo elemento, qual seja, a
geração de lucros, no regime penitenciário, portanto, desnatura por completo
seus próprios desígnios.
4.
A submissão da política prisional à lógica privatista de mercado gera
também efeitos deletérios no campo da Criminologia e do Direito Penal.
Segundo dados do
Infopen, o Brasil possuía, em junho de 2014, a quarta maior população prisional
do mundo, com mais de 600.000 detentos, com um crescimento de 161% desde o ano
de 2.000. O relatório indica, ainda, que cerca de 8 a cada 10 presos possui, no
máximo, o ensino fundamental completo, a revelar que a política de
super-encarceramento atinge, primordialmente, parcela já vulnerabilizada da
população. Não há qualquer indicativo de que a política deprisonização massiva
tenha influído positivamente na redução dos índices de criminalidade.
Por estas razões, a
desaceleração do expansionismo penale da política desobre-encarceramento, com o
implemento de meios e técnicas alternativas de solução de conflitos, deveria
ser um dos principais compromissos éticos de um Estado Democrático de Direito
fundado no princípio da dignidade humana (artigo 1°, III, da Constituição da
República).
Ao se condicionar,
entretanto, o retorno financeiro das empresas conveniadas ao número de vagas e
presos em cada estabelecimento, engendra-se lógica inversa, serviente ao
expansionismo penal; tanto mais elevados serão os lucros da parceira privada
quanto maior o número de reclusos, cumprindo pena pelo maior período de tempo
possível e com o máximo de redução de custos em investimentos na infraestrutura
da unidade prisional. O exercício do poder punitivo que, como potestade,
deveria sempre ser limitado ao máximo pela efetivação de direitos fundamentais,
passa a se nortear pelo critério da obtenção de lucro, mercantilizando-se o
direito fundamental à liberdade.
5.
Neste ponto, revela-se falacioso o argumento de que a privatização não
implicará ingerência direta da iniciativa privada em funções privativas do
Estado, tais como a definição do tempo de pena e a obtenção de benefícios
durante a execução penal.
O artigo 5°, do
projeto de lei em exame, estabelece que somente os cargos de diretor e
vice-diretor do estabelecimento penal serão ocupados por servidores públicos de
carreira, sendo que o restante do quadro de pessoal será formado e contratado
pelo concessionário.
Na prática,
portanto, a fiscalização sobre a conduta carcerária dos detentos, com a
apuração de faltas disciplinares, que repercutem diretamente no tempo de pena a
ser cumprido e obtenção de benefícios os mais variados (LEP, artigos 37, p.u;
52; 118, I; 125; 127; 180, § 1°, d), será desempenhada por prepostos da própria
administradora.
Não fosse o
bastante, o artigo 6°, inciso I, do PL, estabelece que a assistência jurídica
ao preso – por meio da qual ao detento, dentre outros direitos, seria dado
defender-se contra a eventual imposição de procedimentos administrativos
arbitrários – será também prestada pela concessionária responsável pela
administração do estabelecimento.
O dispositivo,
afora o manifesto obstáculo ético, decorrente da manifesta situação de conflito
de interesses, viola frontalmente o artigo 134, da Constituição da República,
que garante que a assistência jurídica aos necessitados seja realizada pelas
Defensorias Públicas, órgão público dotado de autonomia funcional e
administrativa.
Também seguindo-se
essa lógica de interferência do capital privado no cumprimento da pena, o
artigo 12, do PL, estabelece ao concessionário, “considerando o desempenho
laboral do preso”, a possibilidade de sugerir ao Juízo da execução a
possibilidade de plano mais vantajoso na remição de pena.
Por fim, no campo
legislativo, a privatização de função ligada diretamente ao exercício da
soberania estatal atrai para a trincheira dos empresários morais do
expansionismo penal também o interesse das empresas envolvidas na obtenção de
dividendos com a exploração do trabalho e do infortúnio alheios, o que implica
considerável fortalecimento econômico do lobbyem favor da criação de leis
estabelecendo penas mais longas e menos benefícios.
Cria-se, pois,
situação em que a lógica do capital (inclusive o estrangeiro – artigo 15, do
PL) – que evidentemente prepondera, em termos de representatividade junto aos
núcleos de poder, sobre os direitos dos destinatários históricos do
recrudescimento da legislação penal – passa a influir diretamente na política
pública de gestão da segurança.