quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O ESTADO COMO CÚMPLICE – O MAL TOMOU CONTA DAS PRISÕES!

O ESTADO COMO CÚMPLICE – O MAL TOMOU CONTA DAS PRISÕES -

Os recentes episódios no sistema prisional brasileiro a cada dia no revelam o descaso, a impotência e equivocada política penitenciária e de segurança e penitenciária que permeia as ações do Estado mãe e dos Estados-Membros.

Não há que se falar em realidade episódica, é, na verdade, um verdadeiro caos instalado e institucionalizado e já declarado pelo STF como estado de coisas institucionais.

Perceba-se que, mesmo após a vigência da Lei de Execução Penal – Lei 7210/84 -, o tratamento destinado ao cidadão ou cidadã custodiado (a), apesar das prescrições da LEP, ratificadas que foram pela Constituição Federal de 1988, foi sempre de encarceramento sem a menor responsabilidade social, e isso contaminou os diversos órgãos e poderes do Estado que enxergaram (e enxergam) na edição de leis casuísticas e da fomentação do encarceramento o mote e os instrumentos próprios para combater o crime, a violência e a impunidade.

É uma eterna briga da lei surda e muda com o crime. Rigorizamos regimes, aumentamos penas, pregamos a filosofia de quanto mais gente presa, mais a sensação de segurança prevalece, alguns Estados até pagam bônus por prisão e criaram metas mensais para Ips com autorias definidas, enfim, num círculo vicioso de mandamentos absurdos e sem sustentação fática, porém não conseguimos diminuir a criminalidade, aumentamos os índices – mesmo oficiais - da violência urbana -, e brigamos agora com outros instrumentos mais modernos que são o RDD, as prisões federais e a construção de novas unidades prisionais para acomodar os aprisionados que se multiplicam pelos Estados e suas fétidas, terríveis e indignas masmorras, sem se olvidar da monitoração eletrônica que, de opção para um desencarceramento responsável e possível, se transformou em instrumento de segurança pública como se também pudesse evitar o crime e seus efeitos.

Chego a pensar que esse modelo é, na verdade, uma espécie de assepsia social (ou antissepsia), quando o Estado prefere gastar menos entulhando pessoas e misturando-as as drogas, do que cuidando das políticas sociais básicas que poderiam sim evitar e diminuir a avalanche da violência e da criminalidade.
Por vezes penso então que a prisão passou a ser um grande negócio.
O mais recente, lamentável e absurdo massacre na Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus/AM que pelos números nos apresenta uma chacina só comparada ao episódio do Carandiru em 1992, nos remete a responsabilidade do Estado, desta feita não como executor das dezenas de mortos, mas como cúmplice principal e aliado da tragédia anunciada.

Carandiru era no dizer de Sidney Sales, um dos sobreviventes, o vale da sombra da morte, o que dizermos das nossas prisões contemporâneas?

Temos sim, em Pernambuco, no Maranhão, em Roraima, em Rondônia, no Rio Grande do Norte, no Paraná, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Ceará, só para citar alguns Estados, vários Carandirus, inúmeros Comparjs, todos com a cumplicidade omissiva do Estado que deixou o mal tomar conta das prisões, entulhando pessoas como lixos sociais em unidades prisionais sem qualquer condição de abrigar qualquer outro animal. Não contei nessa matemática fúnebre as diversas decapitações dentro das unidades de jovens menores de 18 anos.

Em Carandiru foi uma resposta policial a uma rebelião, que terminou com 111 presos daquela casa de detenção da capital paulista, em outubro de 1992. Doravante, e em situação ainda pior repetimos tragédias quase que semanalmente, como salientado sem que o Estado manche as fardas de sangue, mas sua incontestável cumplicidade.
 
Quando ocorrem tais episódios, e não são raros, levantam-se as vozes e as promessas para construção de novas unidades carcerárias. Pergunto pra quê? - sem pessoal habilitado e suficiente, sem que se reconheça a dignidade no tratamento do encarcerado como parâmetro para todas as demais políticas do sistema prisional  - grifo nosso (Marcellus Ugiette), continuará o Estado como mero arrecadador de corpos, de maneira igual a que vemos fora dos cárceres com a omissão de politicas sociais básicas destinadas as periferias geográficas e financeiras, onde o Estado não entra e quando se faz presente é para se digladiar como o mal que já se fez Estado e manda no pedaço.

É bom frisar que no ocaso do ano passado, o discurso oficial foi de que manter o preso mais tempo encarcerado sinalizava uma politica de contenção da violência  e da diminuição da impunidade.
Entendimento que fere  e caminha na contramão de qualquer análise positiva a respeito do tema. Somos o país que mais encarcerou nos últimos 15 anos, e, fazendo alusão ao mestre Zafarone se não temos a pena de morte, temos a morte pelo azar da prisão brasileira.
A rigor o discurso pós mortes é transferir as lideranças e os responsáveis que o Estado sequer sabe quem são e se sabia é cúmplice/conivente com a barbárie.
A nossa prisão é a expressão da reflexão de Mirabette – “É  instrumento de “degradação, destruidora da personalidade humana e incremento à criminalidade por imitação e contágio”.
Ora, que paradoxo! O Estado é responsável pela custódia e pela vida de cada uma pessoa aprisionada, no entanto, sequer tem o controle e a direção das unidades onde as amontoa.
Temos que vislumbrar a responsabilidade social no encarceramento, na manutenção desse encarceramento e na liberação do aprisionado. Assim prega a LEP que foi fortalecida com a Constituição da República Federativa de 1988.
Pior dos que as favelas das pessoas havidas como livres, a favelização das unidades prisionais é ainda mais hedionda e terrível; como aquelas, o Estado é ausente, cria com isso “lideranças”, facções, grupos de gangues, e se fomenta a droga e outros negócios ilícitos no interior do cárcere, com o efeito lógico e inafastável de tragédias terríveis como a que ocorreu na unidade de Manaus, e como ocorrem cá nas unidades de Pernambuco e em outros Estados. Imagina que o Estado pune pessoas que estavam “traficando ou vendendo” droga dentro da unidade que deveria cuidar, dirigir e buscar a reinserção social positiva jamais como gasto e sim como investimento em segurança e paz social.

Se diferentes e maiores os números de Carandiru e de Manaus, nos demais Estados temos ocorrências com 06 decapitados, 02 mortos a tiros, 10 mortos por queimaduras, etc, e não são menos graves. A repetição de tais eventos de há muito superou os números de Carandiru e do Compaj, mas é bem provável que alguns se alegrem com a diferença matemática.

Me indigna não apenas a quantidade de vidas ceifadas num espaço sob “controle” (?) do Estado, e além de outras feridas, do desespero das famílias, e sim a evidência insofismável que o mal tomou conta das prisões, sob os olhos vedados e os braços engessados do Estado brasileiro.
O Estado além de responsável é cúmplice da tragédia anunciada.

a) Marcellus Ugiette
Promotor de Justiça de Execução Penal
Membro do Conselho Nacional de Politica Criminal e Penitenciária
Professor de Direito Penal e Processo Penal